Visibilidade lésbica e memória - Vá para fora de mim #3
Vamos falar sobre o quanto é difícil ser feliz em agosto?
Eu fecho os olhos antes de começar a escrever. A cantora Ana Carolina diz que o tempo se transforma em memória e eu me pergunto do que preciso esquecer para ver só a parte boa do agosto lésbico. A pergunta que mais me fiz nos últimos dias é: como faço para ficar só com o lance de ser feliz por ser sapatão? Não tenho nenhuma resposta para essa pergunta. Fico agoniada e chego a pensar que estou mesmo me tornando uma pessoa azeda. Respiro o mais fundo que posso, mas renovar o ar que circula dentro de mim não faz com que eu me sinta menos sufocada com as gravações do filme da minha vida. Será que são elas que não me deixam ser totalmente contente nesse mês?
Como em um passe de mágica, meus pensamentos repousam no interior de Minas, nas casinhas todas iguais, na menina que caminha despretensiosamente pela rua enquanto chuta algumas pedrinhas, ela pensava que era diferente, mas não sabia o motivo. A memória me proporciona sentir o aroma amadeirado do meu primeiro perfume e na primeira peça de roupa que tive coragem de comprar. Ao mesmo tempo, recordo da fala de uma pessoa muito próxima. Ela me disse que ser sapatão não significava usar perfume e roupa de homem. Só depois eu vi a crueldade comigo, que só estava descobrindo seu próprio estilo. Quem dera tivesse parado por aí.
Hoje, 14 anos depois, vejo com uma dolorosa nitidez que a minha maneira de ser sempre será questionada. E pior do que isso, invisibilizada. Eu já fui a garota que teve vontade de fugir da cidade, estado, planeta, qualquer lugar que eu pudesse ser livre. Queria ter entendido mais cedo que a vida não responde as nossas questões e como essa querida simplesmente se joga no nosso colo como alguém que há muito não encontra a pessoa que ama. Ela só espera que a gente entenda e aprenda dia após dia.
Ser uma mulher lésbica, negra e desfeminilizada é minha maior potência, mas também é o que mais me marca. Não romantizo o quanto é difícil engolir as agressões diárias. Sinto saudade de uma antiga versão sem tanta carga emocional e que adorava tomar café com bolo de fubá sem pensar em como as oportunidades só surgem para as mesmas pessoas, sempre. Sinto saudade ser uma mulher que não é julgada por uma roupa, cabelo, jeito de amar, raça. Sinto saudade de não precisar me desfazer de algumas lembranças. Sinto saudade de não ter o coração remendado por não deixar uma ou outra ir embora daqui de dentro. Sinto. Sinto. Sinto.
Continuo sem conseguir responder a questão do começo desse texto, mas vejo que aceitar ser uma caixinha de memórias tristes me trouxe até esse exato momento, perto de você que segura a minha mão para voltarmos a caminhar, mesmo que a vontade seja de jogar tudo para o alto, né? Faz isso não, continua.
Eu sei bem que é desesperador ter persistência quando a nossa história é marcada por tantos episódios de dor, mas que é bom poder dizer que sim, já nos tornamos o que ninguém mais vai conseguir destruir:
Nós.
E para nós, que continuamos apesar de qualquer coisa, um feliz agosto lésbico.
Afrocaminhão.
Nossa, Lívia! Fico sempre emocionada quando leio um texto seu, e esse me tocou de tantas formas que você nem imagina.
É triste. É duro. E é muito difícil a realidade para mulheres pretas e desfems. Mas, só de você estar aí escrevendo, você já resignifica tanta coisa.
Obrigada por trazer tanta inspiração para mim e para tantas 💛
FELIZ mês da VISIBILIDADE lésbica, pra você lésbica invisibilizada e triste, mas que APESAR de TANTO continua **viva** 💛🌼